Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda, publicou Raízes do Brasil, livro emblemático na análise da construção histórico-sociológica do humano brasileiro, ali caracterizado como “homem cordial”. Segundo ele, o homem cordial descende da herança patriarcal e rural que caracterizaram mais de quatro quintos da história do Brasil, onde a cordialidade é o desapego a formalismos e meio de manutenção da hegemonia patriarcal-patrimonialista, sobretudo pela confusão (no sentido de não distinguir) o que é público do que é privado.
Frequentemente, a cordialidade brasileira é confundida com gentileza, afabilidade. Nos apresentamos para nós mesmos e para o mundo como hospitaleiros, gentis e afáveis. Mas esta é apenas uma faceta da cordialidade.
Cordial vem de “córdis”, ou seja, coração e, ao coração humano é atribuído tudo que é sentimento, do amor ao ódio. Somos afáveis, mas também impulsivos e violentos.
Chico Buarque, filho do Sérgio, e Ruy Guerra captaram a essência da cordialidade brasileira em Fado Tropical: “Meu coração tem um sereno jeito/E as minhas mãos o golpe duro e presto/De tal maneira que, depois de feito/Desencontrado, eu mesmo me contesto.”
O humano brasileiro retratado age cordialmente, age pelo coração, onde estão armazenadas e fermentadas todas as paixões e, assim, desapega-se da racionalidade.
É claro que muito desta cordialidade desapareceu ao longo do Século XX, com a urbanização e a industrialização. Mas ela ainda aparece forte no DNA brasileiro, que discute futebol como se tratasse da existência do país ou da humanidade e que durante eleições torce para um candidato como se estivesse num campo de futebol. Leva a distorções, como imaginar que Donald Trump quer ser seu amigo e que esta suposição garante vantagens diplomáticas e comerciais ao Brasil.
Não raro, a cordialidade descamba para a violência.
Nas últimas semanas dois casos foram emblemáticos.
Num deles, no dia 3 de outubro, o procurador da Fazenda Matheus Carneiro Assunção, depois de transitar transtornado pela sede Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na Avenida Paulista, invadiu o gabinete e esfaqueou a juíza Louise Filgueiras.
A relevância não está apenas na violência e no fato em si. Nas ruas e, principalmente, em periferias, esta violência ocorre todo dia. O espanto é ter ocorrido justamente dentro de uma repartição pública, cujo acesso de armas é restrito e cujo protagonista tem formação educacional e excelente condição econômica proporcionada por seus vencimentos como servidor público. Parece que o procurador sofreu algum distúrbio mental (fosse preto e pobre já estaria esquecido nalguma cadeia pública).
Mas tem um fato pior, a representar a cordialidade brasileira: o ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, revelou em biografia que foi a uma sessão do Supremo Tribunal Federal com o intuito de matar o Ministro Gilmar Mendes.
O livro de Janot se intitula “Nada menos que tudo” título estranho para a biografia de um integrante do Ministério Público e, sobretudo, para quem o ocupou o mais alto cargo desta instituição.
Janot teria desejado matar Gilmar Mendes porque este declarou em julgamento do STF que a filha dele era advogada de empresas implicadas na Operação Lava Jato.
Há muitas questões espantosas neste caso: a possiblidade de duas das mais altas autoridades do país envolvidas numa cena de faroeste; a violência e a desproporção do gesto: a morte como resposta à maledicência; e, por fim, o argumento usado para justificar a desistência, ou seja, “a mão invisível do bom senso tocou no meu ombro e disse: não”. Aliás, é curioso notar que os textos autobiográficos engrandecem o biografado, de modo que atos tão desprezíveis como este são omitidos. Vale dizer: é espantoso que Janot tenha tido ‒ não a coragem ‒ mas a petulância e a indecência de revelá-lo. Devia, no mínimo, ter vergonha.
Para o que nos interessa por hora, a cogitação homicida de Janot é a manifestação inequívoca da cordialidade brasileira e do total abandono da racionalidade, justamente de pessoas se espera que a racionalidade seja exercida em grau máximo.
Será que além da sabatina no Senado, teremos que submeter os candidatos a PGR a exames psiquiátricos?