“Je suis la Loi, Je suis l’Etat; l’Etat c’est moi” (Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!).
A frase é atribuída a Luis XIV, rei da França entre 1643 e 1715, encarnação do auge do absolutismo, que tinha como características a origem divina do poder real e a concentração de todos os poderes em suas mãos. A frase teria sido dita ao parlamento francês e não exige grandes conhecimentos ou interpretações para compreender seu sentido: quem manda é o rei, só ele, ninguém acima dele. Observe-se que para Luis XIV, ele e a lei eram a mesma coisa; concentra todos os poderes e tudo o que existe lhe pertence e todos os direitos derivam deste poder, incluindo a propriedade e a própria vida humana.
Menos de um século depois da morte do “Rei Sol”, o ideário iluminista e a economia capitalista, respectivamente, inspiraram e patrocinaram as duas revoluções que moldaram o mundo de hoje com a fundação dos Estados Unidos da América e da República Francesa.
As grandes consequências destas revoluções foram o Estado de Direito e a consolidação da República moderna. O rei deixou de ser a lei. As novas ordens jurídicas foram construídas sob o fundamento da liberdade e da igualdade entre os indivíduos, donde derivam todos os demais direitos.
Claro que a história mostrou que o ser humano tem muita dificuldade em se livrar do poder absoluto e tem uma tendência de oprimir que lhe é semelhante, tanto que a história dos últimos três séculos também pode ser contada pela história das guerras e da opressão.
A menção histórica acima é para lembrar que tanto nas revoluções do Século XVIII quando na lei atual, a lei e o governante são distintos. Tanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 quanto na Constituição Brasileira de 1988 consta que o poder emana do povo e que quem governa são seus representantes.
A principal consequência desta distinção é um conceito caríssimo ao Direito Administrativo e que é frequentemente esquecido por quem está numa posição de poder: a impessoalidade.
O princípio da impessoalidade está expressamente previsto no art. 37 da Constituição como um dos princípios a administração pública deve obedecer.
A impessoalidade é um é uma via de mão-dupla: o administrador público (incluindo o servidor e o agente político) não exercem suas atribuições para satisfazer interesses pessoais de si próprio e nem para favorecer uma pessoa em particular, mas para atender ao interesse público.
É a igualdade de direitos e oportunidades que orienta a impessoalidade, garantindo que não haja nem favorecimento indevido, nem exclusão em função do indivíduo.
Por conta da impessoalidade é que se fazem concursos públicos para contratar servidores e licitações para adquirir bens e serviços para a administração pública. Estes mecanismos buscam garantir que assuma o cargo público aquele que tem melhores qualificações, demonstradas por critérios objetivos numa prova de conhecimentos e títulos e não porque o contratado é amigo ou parente do administrador responsável. Visam garantir que a contratação de bens e serviços acontecerá em razão da capacidade técnica, melhor preço e qualidade e não em razão das ligações pessoais ou afetivas dos fornecedores com o responsável pela aquisição. E, também, para que nenhum candidato a servidor ou fornecedor seja excluído ou preterido porque não concorda, não é amigo e nem se presta a pedir favores a quem tem poder de contratação.
Todos, absolutamente todos os casos de corrupção estão de alguma ligados à violação do princípio da impessoalidade. Quando um administrador público recebe propina para fraudar um procedimento licitatório, o faz privilegiando seu interesse pessoal (receber a propina) em detrimento do direito de participação das demais pessoas ou empresas que participam do procedimento licitatório.
Um dos grandes problemas do Brasil em muitas relações com a Administração Pública, é o gosto por obter um favor de poderosos, ou seja, a quebra da impessoalidade em favor do interesse pessoal. Muitas vezes, acredito que a maioria é de pequenos favores, como recolher entulho ou liberar uma licença rapidamente, que muitas vezes são recompensados com pequenos e insignificantes presentes. É justamente essa permissividade que dá origem à corrupção.
Não é diferente com relação à contratação de servidores públicos, especialmente os comissionados (que, a rigor, não precisam de concurso público). A proximidade com as pessoas influentes na administração, por parentesco, afinidade política, amizade ou até pela via financeira, pode facilitar a contratação, em prejuízo da capacidade e da igualdade de oportunidades.
Para fazer um país melhor e verdadeiramente justo, precisamos nos preocupar com as pessoas, não com sua personalização. O rei não pode ser a lei.