Para Patrícia Campos Mello
Divago sobre uma mulher que não conheço.
Numa manhã, ela se olhou no espelho. Os olhos ainda sensíveis à luz da manhã viram os cabelos desarrumados, a marca do lençol no rosto, as olheiras da noite mal dormida e alguma marca da idade.
Talvez quisesse continuar a vestir o mesmo moletom esgarçado para esconder as formas femininas e evitar os olhares insinuantes, os elogios baratos e os pequenos e grandes assédios diários desse mundo que quando olha uma mulher vê um objeto de prazer e não um ser humano.
Pode ser que tenha questionado as escolhas que fez ainda jovem e se imaginado noutra carreira e, com esse pensamento, sofrido em perceber os anos dedicados ao estudo, as infindáveis horas de leitura, o tempo gasto em aprender, se aperfeiçoar e, pior, de estar no centro das atenções. Teria sido melhor a espeleologia ou um laboratório isolado do mundo?
Quem sabe alguma culpa ou arrependimento surgira em meio a estas reflexões matutinas? Algum trabalho incompleto, não ter passado mais tempo com a família, não ter ouvidos todos os discos ou lidos todos os livros que queria ou precisava.
Podia estar indignada ou desaminada: o desafio não era cruzar campos devastados pela guerra ou andar entre pessoas consumidas pela doença, mas confrontar o inimigo vil e desleal que é o preconceito, que se disfarça como brincadeira, como “jeitão de ser” de uma sociedade, para esconder a exclusão, o salário mais baixo e a erotização de sua existência.
Valia a pena continuar sabendo que, por maior que fosse seu esforço em pesquisar, investigar, escrever, falar sobre um algo sério, grave e importante, o conteúdo sempre seria filtrado pela misoginia e, não raro, se perderia nela.
Algumas ideias eram repugnantes. Tinha a certeza de que, em algum momento, quem discordasse de suas ideias ou do seu trabalho tentariam desqualificá-la enquanto pessoa, a acusariam de se oferecer sexualmente para conseguir o que queria.
Numa manhã, ela se olhou no espelho. Vestiu-se como quis. Tinha consigo o que aprendeu. Tinha o orgulho do que construíra até então. Carregava a dignidade de ser pessoa, de ser mulher. Saiu e enfrentou o mundo.