Tenho tentado entender quais os fenômenos históricos ou os dados estatísticos que levaram o Presidente da República a propor modificações no Código de Trânsito Brasileiro. Destaco três pontos: o aumento de vinte para quarenta pontos para suspender a CNH; a punição pode deixar de usar o assento elevatório (a famosa “cadeirinha”) se limitar a uma advertência escrita; a obrigatoriedade do exame toxicológico para motoristas profissionais.
Alguns dados sobre o trânsito no Brasil: de acordo com o Observatório Nacional de Segurança Viária, no ano de 2018, mais de 400 mil pessoas ficaram feridas e cerca de 47 mil morreram em consequências de acidentes de trânsito. Segundo pesquisa realizada pelo extinto Ministério dos Transportes sobre segurança nas rodovias federais, em 2016 e 2017, o fator humano, no qual se incluem a desatenção e o desrespeito às regras de trânsito, foi responsável por 53,7% dos acidentes. Infrações como excesso de velocidade, uso de celular durante a condução de veículo e desrespeitar o sinal vermelho estão entre as infrações mais comuns.
O Presidente parece reputar que tais modificações são importantes para o país, pois foi pessoalmente entregar o projeto à Câmara dos Deputados. Deu entrevista afirmando que o projeto visa “simplificar a vida do motorista”.
O Ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas argumenta que as modificações são necessárias porque o Código de Trânsito “está desatualizado e tornou-se não operacional pelos Detrans” e porque “Dois terços das punições estabelecidas hoje no CTB são graves ou gravíssimas, ficou muito fácil chegar aos 20 pontos”.
A notória estupidez dos argumentos e do próprio projeto é proporcional ao sistemático e recorrente descumprimento de regras de trânsito no Brasil. O problema não é a regra ou seu rigor, tampouco operacionalizar a fiscalização e a aplicação de penalidades, mas nossa percepção distorcida sobre a finalidade e importância da regra de trânsito.
Os limites de velocidade existem por razões técnicas: o problema dos automóveis não é a aceleração, mas a frenagem. Lembro-me de uma palestra de direção defensiva que assisti muitos anos atrás: frear um fusca a 50km/h, numa pista plana e seca, exige 45 metros; se estiver a 70kh/h, são necessários 70 metros.
A obrigatoriedade do assento de elevação para crianças não é uma medida para prestigiar a indústria de assentos. Visa proteger a criança. Se ela estiver sem cinto de segurança, pode ser arremessada várias vezes contra a estrutura do veículo ou até mesmo para fora dele; se estive com o cinto para adultos, pode ser enforcada ou sofrer o “efeito chicote”, que pode provocar severas lesões à coluna vertebral. É necessário dizer: uma criança sem cinto ou com cinto inadequado pode morrer ou se ferir gravemente num acidente de trânsito corriqueiro.
Os motoristas profissionais foram obrigados a fazer exame toxicológico em razão da constatação de que muitos deles consumiam drogas (às vezes para poder cumprir terríveis jornadas de trabalho). E, convenhamos, não é minimamente razoável que alguém alcoolizado ou entorpecido esteja dirigindo um veículo de várias toneladas ou com muitas pessoas.
Tem quem argumente que as infrações sequer deviam existir porque limitam direitos individuais: quem não usa o cinto arrisca a própria vida, quem não usa cadeirinha arrisca a vida do próprio filho. O argumento parece plauasível. Porém, grande parte dos acidentados vai buscar o tratamento no SUS, que é custeado por toda a sociedade e é sabidamente sobrecarregado. Aos invalidados, o INSS tem que garantir um benefício previdenciário. O custo, portanto, é social.
Em suma: o problema não são as regras de trânsito ou a gravidade das penalidades. O problema é a infração. Dito de outro modo: se cumprirmos a regra, a infração não preocupa. As multas e outras penalidades não são medidas de arrecadação, mas de proteção à saúde e à vida.
O problema é que resistimos à regra, especialmente à regra de trânsito. As estatísticas de acidentes e o elevado número de punições revelam isso. É necessário um novo olhar para a legislação de trânsito e, em especial, para a razão dela existir e não para as punições previstas. Isso implica uma mudança cultural profunde e, concordo, não é simples. E é exatamente por esta razão que é indispensável melhorarmos nosso patamar civilizatório antes de reduzir o rigor das normas.