Se você tem um pouco mais de 30 anos e se lembra das aulas de História na escola, deve saber que a “história e a cultura do negro” só eram apresentadas aos alunos quando se falava da escravidão. Nem mesmo quando estudávamos o Egito, recebíamos a informação clara de que estávamos falando de um país do continente africano!
Visando sanar estas falhas e gerar um verdadeiro conhecimento sobre a história e cultura afro-brasileira e africana no Brasil, foi criada a Lei 10.639/03 (que propõe novas diretrizes curriculares para o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana) posteriormente adaptada para a Lei 11.645/08 (que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio).
Refletindo sobre essas leis, o educador Adilson Donizeti da Silva criou a exposição “Uma África num Brasil Africano” apresentando para o público escolar muitas histórias que ainda não são contadas nas salas de aula, principalmente em relação à quebra de preconceitos e apresentação de ações afirmativas sem estereótipos.
Como toda história que começa pela sua origem, não há como pular a parte da escravidão e explicar com um pouco mais de detalhes a forma como os africanos foram trazidos para o Brasil.
Adilson nos conta que após aprisionados na África, muitas vezes durante à noite, os negros passavam por uma seleção no navio negreiro em alto mar, sendo descartados aos tubarões aqueles mais fracos ou doentes que não aguentariam a viagem de cerca de dois meses pelo Oceano Atlântico, empilhados como livros em estantes nos porões dos navios.
Meninos e jovens de 8 a 25 anos eram os mais almejados como escravos, mas nos últimos anos da escravidão “tudo quanto se podia trazer foi trazido: o manco, o cego, o surdo, tudo; príncipes, chefes religiosos, mulheres com bebês e mulheres grávidas”, de acordo com o ex-traficante Joseph Cliffer, em depoimento ao Parlamento Britânico, em 1840.
Adilson também conta que durante muito tempo houve a prática de marcar o corpo do escravo com ferro quente, sendo esta a origem da expressão “estar ferrado”.
De acordo com o site do Museu Afro Brasil (http://www.museuafrobrasil.org.br), marcar a pele dos escravos com ferro em brasa era uma prática bastante comum. Assim como o gado, o negro era tratado como propriedade passível de marca de identificação, havendo até base jurídica nas Ordenações Filipinas Portuguesas, que vigoraram no Brasil de 1603 até 1916 (mesmo que a primeira Constituição do Brasil, de 1824 tenha revogado quase toda Ordenação Filipina), para justificar tal ato. Alguns escravos eram ferrados ainda em sua terra-natal, antes do embarque.
De acordo com Clóvis Moura, autor do Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, a palavra “carimbo”, que é de origem africana, surgiu a partir desse hábito. Os “carimbos” podiam variar de acordo com o gosto do comprador. Alguns preferiam na coxa, outros nos braços, no ventre, no peito e até no rosto. As marcas podiam ser letras, flores, símbolos ou sinos. Alguns dos que eram obrigados a se converter à religião cristã recebiam como recompensa um ferro incandescente em formato de cruz no peito.
Adilson ressalta que os escravos fujões ou aqueles que se rebelavam com frequência podiam receber uma nova marca, às vezes na testa, para tornar pública a insubordinação.
Fechando a história da escravidão, Adilson indica a leitura do livro “O Amigo do Rei” de Ruth Rocha, para a compreensão da história dos quilombos. Usando da técnica de confecção das abayomis (bonecas de pano a partir de sobras reaproveitadas, feitas apenas com nós, sem o uso de cola ou costura) para representar os personagens Ioiô e Matias, Adilson nos apresenta uma das versões sobre a origem das oferendas nas religiões de matrizes africanas, ressaltando que não tem nada a ver com macumba. Aliás, sobre a macumba, falaremos ao final deste texto.
Em relação à religião, a exposição traz o belíssimo trabalho dos artistas Fúlvio Setti e Célia Oliveira, com a representação dos orixás do Candomblé e da Umbanda.
O Candomblé veio da África, trazido ao Brasil por meio dos negros africanos escravizados e sofreu adaptações no Brasil, sendo considerado uma religião afro brasileira. Sua crença segue as leis da natureza e suas divindades são os orixás, vistos como ancestrais divinos que cuidam e equilibram nossas energias. Já a Umbanda é uma religião brasileira que surgiu em 1908 e mescla elementos do catolicismo, cultos africanos e do kardecismo. A Umbanda acredita nos orixás como espíritos ancestrais, que se comunicam com a terra por meio da incorporação de médiuns.
O número de orixás no Candomblé pode variar de 16 até 72 e na Umbanda são nove orixás (Iansã, Iemanjá, Nana Buruquê, Obaluaê/Omulú, Ogum, Oxalá, Oxossi, Oxum e Xangô).
A religiosidade e cultura afro brasileiras e africanas também estão presentes nas vestimentas. De acordo com Lúcia Gaspar, bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco em artigo publicado no portal de mídia afro Awùre, a África negra tem uma longa tradição têxtil, onde a variedade de materiais é tão grande quanto os estilos encontrados.
Diz-se com frequência que os Africanos eram mais escultores que pintores: os tecidos podem ser considerados, na África, substitutos da pintura.
Os tecidos de fabricação local constituíram durante muito tempo bens raros e preciosos; marcas de poder e de riqueza, reservados a uma elite, eles foram integrados como moeda para troca, graças aos quais era possível estimar o preço de uma mercadoria e comprá-la. Desde sua chegada nas costas do continente, no século 15, os traficantes europeus exploraram as possibilidades comerciais que ofereciam esta nova “moeda” e encorajaram indiretamente a produção têxtil local devido à sua utilização. A quantidade de tecidos detidos por cada família foi considerada durante muito tempo uma marca de riqueza e de poder em muitas sociedades africanas. (…) Mas o tecido não é somente moeda ou roupa: ele representa também, de acordo com seu estampado, uma espécie de texto onde podem ser “lidas” a identidade social e religiosa daquele que o usa: a decoração, seja ela impressa, tingida, pintada, tecida ou costurada, representa os espaços, os objetos, os seres e as metamorfoses presentes na mitologia.
As cores verde, amarelo ouro e vermelho que são encontradas na bandeira nacional de muitas nações africanas, fazem referência à bandeira da Etiópia, admirada pelos novos Estados independentes da África, por ter sido um país que permaneceu fora do controle europeu durante a era colonial, nunca tendo se tornado uma colônia.
Outra bandeira conhecida é a Bandeira da Libertação Negra, criada pelos membros da Associação Universal para o Progresso Negro (AUPN) para ser o estandarte oficial da Raça Africana. A bandeira foi formalmente adotada no artigo 39 da Declaração dos Direitos dos Povos Negros do Mundo a 13 de Agosto de 1920 e tornou-se posteriormente um símbolo do nacionalismo africano pela libertação de seu povo por todo o mundo.
As três cores da bandeira, vermelho, preto e verde, representam respectivamente: o sangue que une todo o povo de ascendência africana e que foi derramado pela libertação; o povo negro cuja existência como nação, embora não seja um estado-nação, se afirma pela existência da bandeira; e a abundante riqueza natural de África.
Sobre a parte instrumental, Adilson ressalta que o samba é uma música brasileira formada pela junção da influência do indígena (flauta), do africano (tambores, xequerê) e do europeu (cavaquinho e o pandeiro).
O berimbau, muito conhecido atualmente pela capoeira, já era usado na África como acompanhamento musical de rituais fúnebres, sendo mais conhecido o berimbau de boca. No Brasil, o primeiro uso do berimbau foi no século XIX, pelos escravos libertos para atrair compradores dos doces que vendiam nas ruas.
Por fim, vamos falar da macumba, que nada mais é do que o nome de uma árvore e de um instrumento musical de percussão utilizado em religiões afro brasileiras, chamado também de reco-reco. Desta forma, macumbeiro é o indivíduo que toca o reco-reco e a relação de macumba como algo ruim vem justamente do preconceito em tratar tudo que vem do povo negro como sendo do mal.
Muitas outras histórias estão presentes na exposição “Uma África num Brasil Africano” durante este mês de novembro na Sala Agaso da Estação Cultura Editor José Olympio. Os agendamentos das visitas estão sendo realizados diretamente na Secretaria de Educação, pelo telefone (16) 3761 7200.