A fraude eleitoral
Desde muito que várias personalidades da República, próceres de vários partidos e facções que se propunham salvar a pátria, mediante medidas inócuas ou simplórios cortes sistemáticos na arraia-miúda; desde muito, dizíamos, que várias personalidades se reuniam para resolver o problema da verdade eleitoral.
A comissão, como fazia há seis anos, se congregou naquela tarde para apresentar ideias tendentes a obter da exata manifestação das urnas a legítima representação nacional.
O senador Brederodes apresentou as suas ideias, o seu colega Marcondes as suas opiniões; Machado Malagueta aventou alguma coisa; enfim toda a comissão trabalhou a valer, e os alvitres mais sutis, mais severos, mais saudáveis, foram sugeridos para que a fraude fosse evitada nas eleições federais.
Despediram-se amáveis, sorridentes. E, ao famoso “secretário” da comissão, o oficial da Secretaria do Senado, Raide, pareceu que, daquela confabulação, ia sair obra de grande valia e alcance.
O seu desgosto, ao supor isto, era de não poder ele também assinar o projeto.
Seria a imortalidade…
Brederodes, que era econômico, desceu a pé até às ruas centrais. Atravessou o Campo de Santana apreensivo.
Chegou à chapelaria Watson e encontrou logo o seu adepto Fulgêncio, deputado desconhecido.
Falou-lhe este com todo o respeito devido ao chefe supremo do seu partido.
— Como vai Vossa Excelência?
— Não estou bom hoje, Fulgêncio.
— Por quê?
— Aborreci-me no Senado, na reunião da comissão.
— Que houve?
— Escuta aqui.
E trouxe o seu assecla para um canto.
— Aquele canalha do Malagueta parece que anda de mãos dadas com o
Dourado e os meus adversários no estado.
— Por quê?
— Não é que ele propôs que, na reforma eleitoral a fazer-se, não houvesse voto cumulativo? Estou derrotado…
Enquanto isso se passava, Malagueta, que viera de bonde, já se havia encontrado com a mulher e as filhas em uma confeitaria. Uma destas lhe disse:
— Papai parece que está contrariado.
— Pudera!
Poesia: o velho abrigo da alma
“Filhos da época”, de Wislawa Szymborska
“Somos filhos da época
e a época é política.
Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.
Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.
O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.
Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.
Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.
Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.
Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.”
(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)