Ontem de manhã, indo ao jardim, como de costume, achei lá um burro. Não leram mal, não está errado (como na Semana passada, em que saiu Banco União, em vez de Banco Único); não, meus senhores, era um burro de carne e osso, de mais osso que carne. Ora, eu tenho rosas no jardim, rosas que cultivo com amor, e que me querem bem, que me saúdam todas as manhãs com os seus melhores cheiros, e dizem sem pudor coisas muito galantes sobre as delícias da vida, porque eu não consinto que as cortem do pé. Hão de morrer onde nasceram.
Vendo o burro naquele Iugar, lembrei-me de Lucius, ou Lucius da Tessália, que, só com mastigar algumas rosas, passou outra vez de burro a gente. Estremeci, e, — confesso a minha ingratidão, — foi menos pela perda das rosas, que pelo terror do prodígio. Hipócrita, como me cumpria ser, saudei o burro com grandes reverências, e chamei-lhe Lucius. Ele abanou as orelhas, e retorquiu:
—Não me chamo Lucius.
Fiquei sem pinga de sangue; mas para não agravá-lo com demonstrações de espanto, que Ihe
seriam duras, disse:
—Não? Então o nome de Vossa Senhoria.., ?
—Também náo tenho senhoria. Nomes só se dão a cavalos, e quase exclusivamente a cavalos de corrida. Não leu hoje telegramas de Londres, noticiando que nas corridas de Oaks venceram os cavalos Fulano e Sicrano? Não leu a mesma coisa quinta-feira, a respeito das corridas de Epsom? Burro de cidade, burro que puxa bonde ou carroça não tem nome; na roça pode ser. Cavalo é tão adulado que, vencendo uma corrida na Inglaterra, mandasse-lhe o nome a todos os cantos da Terra. ”Não pense que fiz verso: às vezes saem-me rimas da boca, e podia achar editor para elas, se quisesse; irias não tendo ambições literárias. Falo rimado, porque falo poucas vezes, e atrapalho-me. Pois, sim senhor. E sabe de quem é o primeiro dos cavalos vencedores de Epsom, o que se chama Ladas? É do próprio chefe do governo, lord Roseberry, que ainda não há muito ganhou com ele dois mil guinéus.
—Quem é que Ihe conta todas essas coisas inglesas?
—Quem? Ah! meu amigo, é justamente o que me traz a seus pés, disse o burro ajoelhando-se, mas levantando-se Iogo, a meu pedido. E continuou: Sei que o senhor se dá com gente de imprensa, e vim aqui para lhe pedir que interceda por e por uma classe inteira, que devia merecer alguma compaixão…
—Justiça, justiça, emendei eu com hipocrisia e servilismo.
—Vejo que me compreende. Ouça-me; serei breve. Em regra, só se devia ensinar aos burros a língua do país; mas o finado Greenough, o primeiro gerente que teve a companhia do Jardim Botânico, achou que devia mandar ensinar inglês aos burros dos bondes. Compreende-se o motivo do ato. Recém- chegado ao Rio de Janeiro, trazia mais vivo que nunca o amor da língua natal. Era natural crer que nenhuma outra cabia a todas as criaturas da Terra. Eu aprendi com facilidade…
—Como? Pois o senhor é contemporâneo da primeira gerência?
—Sim, senhor; eu e alguns mais. Somos já poucos, mas vamos trabalhando. Admira-me que se admire. Devia conhecer os animais de 1869 pela valente decrepitude com que, embora deitando a alma pela boca, puxamos os carros e os ossos. Há nisto um resto da disciplina, que nos deu a primeira educação. Apanhamos, é verdade, apanhamos de chicote, de ponta de pé, de ponta de rédea, de ponta de ferro, mas é só quando as poucas forças não acodem ao desejo; os burros modernos, esses são teimosos, resistem mais à pancadaria. Afinal, são moços.
Suspirou e continuou:
No meio da tanta aflição, vale-nos a leitura, principalmente de folhas inglesas e americanas, quando algum passageiro as esquece no bonde. Um deles esqueceu anteontem um número do Pruth. Conhece o Pruth?
—Conheço.
—É um periódico radical de Londres, continuou o burro, dando à força a notícia, como um simples homem. Radical e semanal. É escrito por um cidadão, que dizem ser deputado. O número era o último, chegadinho de fresco. Mal me levaram à manjedoura, ou coisa que o valha, folheei o periódico de Labouchere… Chamava-se Labouchere o redator. O periódico publica sempre em duas colunas, notícia comparativo das sentenças dadas pelos tribunais londrinos, com o fim de mostrar que os pobres e desamparados têm mais duras penas que os que o não são, e por atos de menor monta. Ora, que hei de ler no número chegado? Coisas destas. Um tal John Fearon Bell, convencido de maltratar quatro potros, não lhes dando suficiente comida e bebida, do que resultou morrer um e ficarem três em mísero estado, foi condenado a cinco libras de multa; ao Iado desse vinha o caso de Fuão Thompson, que foi encontrado a dormir em um celeiro e condenado a um mês de cadeia. Outra comparação. Eliott, acusado de maltratar dezesseis bezerros, cinco libras de multa e custas. Mary Ellen Connor, acusada de vagabundagem, um mês de prisão. William Poppe, por não dar comida bastante a oito cavalos, cinco Libras e custas. William Dudd, aprendiz de pescador, réu de desobediência, vinte e dois dias de prisão. Tudo mais assim. Um rapaz tirou um ovo de faisão de um ninho: quatorze dias de cadeia. Um senhor maltratou quatro vacas, cinco libras e custas.
—Realmente, disse eu sem grande convicção, a diferença é enorme…
—Ah! meu nobre amigo! Eu e os meus pedimos essa diferença, por maior que seja. Condenem a um mês ou a um ano os que tirarem ovos ou dormirem na rua; mas condenem a cinquenta ou cem mil réis aqueles que nos maltratam por qualquer modo, ou não nos dando comida suficiente, ou, ao contrário, dando-nos excessiva pancada. Estamos prontos a apanhar, é o nosso destino, e eu já estou velho para aprender outro costume; mas seja com moderação, sem esse furor de cocheiros e carroceiros. O que o tal inglês acha pouco para punir os que são cruéis conosco, eu acho que é bastante. Quem é pobre não tem vícios. Não exijo cadeia para os nossos opressores, mas uma pequena multa e custas, creio que serão eficazes. O burro ama só a pele; o homem ama a pele e a bolsa. Desse-lhe na bolsa; talvez a nossa pele padeça menos.
—Farei o que puder; mas…
—Mas quê? O senhor afinal é da espécie humana, há de defender os seus. Ela, fale aos amigos da imprensa; ponha-se à frente de um grande movimento popular. O conselho municipal vai levantar um empréstimo, não? Diga-lhe que, se lançar uma pena pecuniária sobre os que maltratam burros, cobrirá cinco ou seis vezes o empréstimo, sem pagar juros, e ainda lhe sobrará dinheiro para o Teatro Municipal, e para teatros paroquiais, se quiser. Ainda uma vez, respeitável senhor, cuide um pouco de nós. Foram os homens que descobriram que nós éramos seus tios, senão diretos, por afinidade. Pois, meu caro sobrinho, é tempo de reconstituir a família, não nos abandone, como no tempo em que os burros eram parceiros dos escravos. Faça o nosso treze de maio. Lincoln dos teus maiores, segundo o evangelho de Darwin, expede a proclamação de nossa liberdade!
Não se imagina a eloquência destas últimas palavras. Cheio de entusiasmo, prometi, pelo céu e pela terra, que faria tudo. Perguntei-lhe se lia o português com facilidade; e, respondendo-me que sim, disse-lhe que procurasse a Gazeta de hoje. Agradeceu-me com voz lacrimosa, fez um gesto de orelhas, e saiu do jardim vagarosamente, cai aqui, cai acolá.
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.