Estas perguntas estão sempre presentes em nosso trabalho no Museu Histórico e Pedagógico Dr. Washington Luís, pois, ao se tornar acervo do museu, o objeto perde sua função utilitária e se transforma em um suporte de memórias e histórias.
Pensando nisso, neste mês de agosto, estamos olhando com maior atenção para nosso acervo de sapatos e objetos relacionados ao ofício de sapateiro.
A história do sapato tem sua origem vinculada à necessidade de o homem da pré-história proteger seus pés das adversidades do meio em que vivia e foi adquirindo novos significados com o passar dos tempos.
Considerado indicativo de posição social, desde a antiguidade, nas civilizações grega, romana e na egípcia, com distinções de formas e cores de acordo com a classe e poder de seu usuário; o calçado passou a ter seu tamanho padronizado somente em 1305, na Idade Média e só foi produzido industrialmente a partir do século XVIII.
Observar a história do sapato é o mesmo que entender a evolução da humanidade, pois a partir dos avanços tecnológicos e sociais, novos modelos de calçados foram surgindo para atender às demandas da sociedade moderna, seja para as atividades de trabalho, higiene, vida social, moda, economia, guerras, esportes e até fetiches.
Como uma história puxa a outra, um dos fatores que fez com que os sapatos se tornassem mais acessíveis e diversificados foi a criação da máquina de costura em 1790. Patenteada pelo inglês Thomas Saint, esta máquina foi criada justamente para realizar trabalhos de costura em couro para sapatos, reduzindo consideravelmente os custos de sua produção artesanal.
No século XX, além do tecido e do couro, a borracha, a lona e os materiais sintéticos foram introduzidos na confecção dos sapatos.
Outro fato curioso é que o sapato, originalmente voltado para o público masculino, acabou por se tornar um dos principais objetos de consumo da população feminina, fato este que podemos constatar em nosso acervo, formado em sua maioria pelos sapatos de jovens senhoras.
A partir do momento em que a mulher passou a participar mais ativamente da vida no espaço urbano e a trabalhar; o transitar pela cidade gerou a necessidade de reduzir o comprimento das barras das saias, dando maior visibilidade aos sapatos.
De acordo com Jean Baptiste Debret, em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado entre os anos de 1834 e 1836, as cores utilizadas pelos sapatos de seda das mulheres, no início do século XIX eram o branco, o rosa e o azul e que mais tarde acrescentaram-se o verde e o amarelo, que eram as cores imperiais. Conta ainda que as senhoras ricas obrigavam suas escravas a usar sapatos quando as acompanhavam nas missas ou passeios. Em casa, os escravos andavam descalços e as mulheres usavam chinelos. Debret afirma que “o europeu que chegasse ao Rio de Janeiro, em 1816, mal poderia acreditar, diante do número considerável de sapatarias, todas cheias de operários, que esse gênero de indústria se pudesse manter numa cidade em que cinco sextos da população andam descalços. Compreendia-o, entretanto, logo quando lhe observavam que as senhoras brasileiras, usando exclusivamente sapatos de seda para andar com qualquer tempo por cima das calçadas de pedras, que esgarçam em poucos instantes o tecido delicado do calçado, não podiam sair mais de dois dias seguidos sem renová-los, principalmente para fazer visitas”.
Apenas no final do século XIX é que o Brasil passou a fabricar sapatos, principalmente devido à chegada dos imigrantes italianos no Sudeste (Franca/SP) e dos imigrantes alemães no Sul (Vale do Rio dos Sinos/PR), habilidosos em trabalhar com o couro nessas regiões com grande oferta da matéria prima, além da demanda por artefatos de montaria e calçados.
O modelo de sapato mais usado no Brasil entre os anos de 1910 e 1920 era o borzeguim, também conhecido como botina, pois os pés femininos não podiam ser expostos. Quanto menores os comprimentos dos vestidos, maiores eram os canos das botinas.
Nos anos 20, a criação de uma máquina de colar a sola do calçado gerou a substituição dos pregos e tornou os sapatos mais leves.
A moda dos calçados foi diversificando e com ela novos produtos voltados para cuidar dos calos dos pés se destacaram na publicidade das revistas dos anos 30, indicando que nem sempre os belos sapatos eram confortáveis.
Já nos anos 50, o pós-guerra alterou significamente a maneira de calçar. Sem o couro que foi usado em grande parte na guerra, os novos calçados eram feitos de materiais sintéticos e cortiça. Os sapatos ficaram mais abertos, deixando o peito descoberto, e poderiam ter alças em cima do pé, fechadas lateralmente, ou tiras na parte traseira, presas no tornozelo. O conforto era importante e por causa disso, os saltos não eram muito altos.
No acervo do museu, temos uma colação de calçados que datam do início do século XX até meados dos anos 50. Chama a atenção, a botina adaptada para o 1º Tenente da II Guerra Mundial, Dr. Antônio Teodoro de Lima, gravemente ferido na primeira missão da FEB e que teve parte de sua perna amputada.
Outra curiosidade é o quanto os borzeguins eram estreitos e o sofrimento que tais calçados deveriam gerar aos pés das mulheres.
Em relação aos objetos relacionados ao ofício de sapateiro, destacamos os tripés de ferro utilizados nos consertos dos sapatos e as formas de madeira utilizadas para a confecção de calçados nas oficinas de aprendizado dos internos do Instituto Agrícola de Menores de Batatais (1946/1971).
VOCÊ SABIA?
– A numeração do sapato originou-se na Idade Média, na Inglaterra, quando o rei Eduardo I uniformizou as medidas, decretando em 1305, que uma polegada correspondia a três grãos de cevada colocados um atrás do outro.
– No século XVI, na Inglaterra, foi promulgada uma lei que permitia ao marido anular o casamento se a noiva falsificasse sua altura usando chapins (sapatos plataforma) durante a cerimônia.
– Apesar de não haver indícios sobre quem criou o salto alto, sabe-se que ele foi amplamente utilizado a partir do século XVII na corte do rei Luís XIV (1643-1715), da França, que abusava do luxo, das perucas e dos sapatos de salto. Dizem as más línguas (e os registros históricos) que Luís XIV não passava de 1,60 metro, por isso adorava sapatos que pudessem aumentar sua estatura.
– No século XVI os saltos eram objetos exclusivamente masculinos, um símbolo de ostentação e riqueza. Na corte do rei Luís XIV os homens usavam saltos altíssimos.
– Até a metade do século XIX, os dois pés do sapato eram iguais. O primeiro par feito com pé direito e pé esquerdo apareceu entre 1801 e 1822, na Filadélfia.
– No Brasil, os escravos eram proibidos de usar sapatos, mas quando conseguiam a liberdade, faziam de tudo para adquirir um par de calçados como símbolo da nova condição social. Como muitos não se acostumavam a usá-lo, viravam objeto de decoração ou de prestígio, carregando-os, orgulhosamente, nos ombros ou nas mãos.
– A capoeira angola é jogada com sapato em referência ao uso do calçado pelo escravo liberto.
– A data escolhida para celebrar o Dia do Sapateiro, 25 de outubro, é a dos santos padroeiros: São Crispim e São Crispiniano.