
É quase irresistível: aquelas bochechas redondinhas, os braços e pernas “enroladinhos”. Culturalmente, temos a tendência de associar criança “fofinha” a criança saudável. Mas é preciso olhar com mais cuidado. O que hoje é chamado carinhosamente de “fofinho” pode ser, na verdade, o primeiro sinal de um problema de saúde grave que carrega o risco de se tornar uma herança para a vida adulta: a obesidade infantil.
Os números não mentem e são alarmantes. De acordo com o IBGE, em um intervalo de 20 anos, a obesidade infantil mais que dobrou entre crianças de 5 a 9 anos, saltando de 6,6% (1989) para 19,4% (2019-2020). Já o sobrepeso nesta mesma faixa etária atingiu a marca preocupante de 38,1%. Somados, esses números revelam uma realidade assustadora: mais da metade (57,5%) das crianças brasileiras nessa idade está com peso acima do recomendado. As gerações atuais de crianças estão crescendo em um ambiente radicalmente diferente do que há algumas décadas. E esse ambiente, repleto de facilidades e tentações, está silenciosamente moldando uma geração com maior propensão a doenças crônicas.
Os Riscos que Vão Além da Estética
O sobrepeso na infância não é uma questão de imagem. É uma questão de saúde pública. Crianças com obesidade têm uma probabilidade muito maior de se tornarem adultos obesos, carregando consigo um pacote perigoso de riscos:
Resistência à insulina: antes do diabetes tipo 2, por muitos anos vai-se aumentando a resistência insulínica até que o pâncreas não aguenta mais e colapsa. O melhor exame neste caso é o HOMA-IR, que faz um cálculo entre glicemia e insulina em jejum para determinar o nível de resistência à insulina. Dá pra cuidar antes de avançar para diabetes.
Diabetes Tipo 2 “silencioso”: Antes uma doença quase exclusiva de adultos, hoje é frequente em adolescentes. Ela se instala sem alarde, danificando os vasos sanguíneos e nervos anos antes de ser diagnosticada.
Problemas cardiovasculares “adiantados”: Pressão alta e colesterol elevado não são mais exclusividade dos avós. Crianças já apresentam esses quadros, que são a porta de entrada para infartos e AVCs precoces.
Problemas ortopédicos e articulares: O peso excessivo sobrecarrega estruturas ainda em formação, podendo causar dores, alterações na coluna e nos joelhos.
Baixa autoestima e bullying: O impacto psicossocial é profundo e pode deixar marcas para a vida toda, afetando o desempenho escolar e as relações sociais.
O Mundo Mudou (e a Nossa Comida Também)
Por que isso está acontecendo? A resposta está em dois pilares: o que comemos e como nos movemos.
A facilidade de acesso a alimentos ultraprocessados – cheios de açúcar, sal, gordura e aditivos químicos – é enorme. São salgadinhos, bolos industrializados, biscoitos recheados, refrigerantes e sucos de caixinha que saciam a fome, mas não nutrem. Eles são “calorias vazias”, que engordam sem fornecer vitaminas e minerais essenciais para o crescimento.
Paralelamente, a cultura do brincar mudou. As brincadeiras de rua, que envolviam correr, pular, escalar e gastar energia, foram em grande parte substituídas pelas telas. Tablets, smartphones e videogames prendem a atenção por horas, em um comportamento totalmente sedentário. A falta de segurança em espaços públicos também contribui para esse confinamento.
O que Podemos Fazer? Ação é a Melhor Prevenção
A boa notícia é que a obesidade infantil é, em grande parte, prevenível. A solução não está em dietas restritivas para crianças, mas em uma mudança de hábitos de toda a família.
Desembale menos, descasque mais: Incentive o consumo de frutas, legumes e verduras. Faça da comida de verdade o protagonista das refeições.
Bebida é água: Substitua refrigerantes e sucos industrializados por água. Sucos naturais são opção, mas com moderação.
Mexa-se em família: Seja o exemplo! Programe passeios ao ar livre, caminhadas no parque, jogos de bola. Limite o tempo de tela e incentive atividades que movimentem o corpo.
Afeto não é comida: Não use guloseimas como recompensa ou consolo. Demonstre amor com atenção, conversa e tempo de qualidade juntos.
O Ambiente Obesogênico Começa em Casa: A Herança Familiar do Peso
Os números já são alarmantes, mas quando olhamos para dentro dos lares, a relação se torna ainda mais evidente e preocupante. A pergunta é direta: pais com excesso de peso tendem a ter filhos com excesso de peso? A ciência responde com um SIM categórico.
Diversos estudos, incluindo análises feitas a partir de dados do IBGE e de pesquisas acadêmicas, mostram que:
Crianças com ambos os pais obesos têm uma probabilidade significativamente maior (até 5 vezes mais) de serem obesas comparadas àquelas cujos pais estão no peso adequado.
A presença da obesidade em um dos pais já é um forte fator de risco para o desenvolvimento da obesidade na criança.
Isso vai muito além da genética. Estima-se que apenas 30% a 40% da predisposição à obesidade seja hereditária. Os outros 60% a 70% são explicados por fatores ambientais e comportamentais compartilhados.
É Genética ou É Ambiente?
Muitas vezes, o ambiente obesogênico é confundido com destino genético. É comum ouvirmos: “é de família, o avô era gordo, o pai era, agora o filho é”. Embora exista uma influência genética, ela sozinha não determina o quadro.
É crucial entender: predisposição genética não é sentença. A genética pode carregar a arma, mas é o ambiente obesogênico – com seus maus hábitos alimentares e sedentarismo – que puxa o gatilho. O que se herda verdadeiramente, e explica a grande maioria dos casos, são os hábitos. Herda-se o mesmo padrão alimentar, a mesma relação com a comida e as mesmas escolhas de lazer sedentário, geração após geração.
O que isso significa na prática?
Significa que a família compartilha muito mais do que genes; compartilha hábitos. É um sinal claro de que o ambiente obesogênico é cultivado dentro de casa, através de:
Os Mesmos Hábitos Alimentares: A família compra, cozinha e consome os mesmos alimentos. A disponibilidade de ultraprocessados, o alto consumo de refrigerantes e a baixa ingestão de frutas e verduras é um padrão comum a todos os membros.
Os Mesmos Estilos de Vida: Famílias sedentárias tendem a criar filhos sedentários. Se o lazer é centrado em telas (TV, videogame, celular) e não há atividades físicas ou brincadeiras ativas incorporadas na rotina familiar, todos são afetados.
A Mesma “Cultura” sobre Comida: A maneira como a família enxerga a comida – usando-a como recompensa, consolo ou até mesmo como foco central de todas as celebrações – é passada adiante.
Portanto, encontrar uma criança com obesidade frequentemente é um indicador de que toda aquela família está imersa em um ambiente que promove o ganho de peso. Esta não é uma questão de culpa, mas de consciência. Reconhecer que os hábitos da casa são o maior fator de risco – e também a maior oportunidade de solução – é o primeiro passo para quebrar esse ciclo.
A boa notícia é que, assim como os maus hábitos são “contagiosos”, os bons também podem ser. Quando a família se mobiliza para criar um ambiente mais saudável, todos se beneficiam – pais e filhos.
Proteger a infância é também proteger a saúde futura dos nossos filhos. Vamos substituir o termo “fofinho” por “saudável”. Vamos garantir que as bochechas rosadas sejam sinal de vitalidade, e não um alerta para um futuro cheio de complicações. O cuidado de hoje é a longevidade de amanhã.





