Da proteção do acervo Portinari à demolição do Palacete do Cel. Martinho Ferreira Rosa
De tempos em tempos nos deparamos com os questionamentos sobre “quem determina o que é e o que não é arte? ”, “quem define o que é e o que não é patrimônio? ”, “quem decide o que entra ou não na história da arte? ”, “quem determina o que entra ou não no acervo de um museu? ” e “qual é o limite da propriedade do artista sobre sua obra?”
Poderíamos mudar as perguntas para quais os critérios utilizados para se determinar e legitimar o que é arte, patrimônio cultural e o acervo de um museu; e, apesar destes questionamentos não terem nenhuma originalidade, o que mais nos intriga é justamente o porquê essas decisões ainda geram conflitos e estão nas mãos de uma minoria, sejam eles acadêmicos capacitados para tal ou apenas intelectuais e artistas engajados na defesa da arte, memória e patrimônio cultural.
Diante do exposto, torna-se um grande risco manter essas decisões restritas a tão poucos historiadores, curadores ou instâncias oficiais na área cultural, pois, muito do que é arte, patrimônio e acervo pode ficar fora desta legitimação oficial. Outro risco é justamente o reconhecimento desses bens como arte, patrimônio ou acervo museológico, o que pode provocar a perda da característica que os tornava excepcional e identitário de uma cultura com o uso ou a guarda indevida deste bem.
Em Batatais, o primeiro registro de proteção ao patrimônio através de um tombamento oficial está relacionado ao Projeto de Lei nº 1345/73 de autoria do deputado federal Adhemar de Barros Filho, propondo uma lei de proteção ao acervo de Cândido Torquato Portinari (“São Bom Jesus da Cana Verde” – 5 quadros, “Nossa Senhora Aparecida” -4 quadros, “Transfiguração de Jesus”, “São Sebastião”, “Batismo de Jesus”, “A Fuga para o Egito” e “A Sagrada Família”) doados pela Comissão de Obras da Igreja Matriz de Batatais à Paróquia do Senhor Bom Jesus da Cana Verde.
Naquela época, o Projeto de Lei foi considerado inconstitucional e injurídico pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o que não impediu o IPHAN de incorporar o conjunto pictórico ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, inscritos em 24 de setembro de 1974 no Livro das Belas Artes do IPHAN, folha 95, sob o número 519.
Tal tombamento foi resultado da tentativa do poder público municipal proteger um patrimônio ameaçado de degradação de acordo com reportagem do “O Jornal” de Batatais, datado de 23 de fevereiro de 1974, anexada ao processo de tombamento do IPHAN (IPHAN, 1974). No corpo do processo de tombamento, há um parecer da Chefe de Seção de Arte do MEC-IPHAN, Lygia Martins da Costa, informando que o conjunto da Via Sacra realizada por Portinari para a mesma igreja, também deveria ser protegido, o que não foi atendido em sua íntegra pelo IPHAN, sendo tombado ao final do processo apenas o conjunto dos 14 quadros propostos pelo Projeto de Lei 1345/73.
Todavia, que não se limite a eles o tombamento a ser feito agora. Do mesmo autor e na mesma Igreja, igualmente remetidas a este Instituto pelo Ilustre Deputado paulista, fotografias dos Passos revelam outro conjunto a ser preservado, também de grande categoria posto que de intenção plástica diversa. À preocupação neo-realista da preservação de detalhes e ao sentido predominantemente estático das peças do 1º Grupo se contrapõem, neste, uma visão dinâmica e trágica, em linguagem de aparência simplificada, o espírito emocional tenso da Paixão de Cristo. Recomenda-se, pois, a proteção dos dois conjuntos de Portinari na Matriz do Bom Jesus da cana Verde, de Batatais, inscrevendo-os ambos no Livro do Tombo Artístico do IPHAN. Rio, em 9.8.1974. Lygia Martins Costa, Chefe da Seção de Arte. (IPHAN, 1974)
Chama a atenção, o fato que passados três anos do tombamento pelo IPHAN, o prefeito da cidade em 1977, Antônio Claret Dal Picolo, nada tinha de documentação sobre o mesmo, sendo uma constante dúvida se tais bens eram ou não patrimônio, encaminhado ao IPHAN uma solicitação de informações sobre respectivo processo.
Entre os anos de 1979 e 1980, o CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico escalou o conselheiro e arquiteto Gustavo Neves da Rocha Filho, para elaborar um inventário preliminar de bens arquitetônicos com interesse pela preservação e que resultou na publicação do “Levantamento sistemático destinado a inventariar bens culturais do Estado de São Paulo” pelo CONDEPHAAT em 1982.
Do levantamento realizado pelo CONDEPHAAT, os bens da cidade de Batatais preenchem dezenove páginas , mas apenas as 14 telas da Via Sacra do pintor Cândido Portinari, executadas em 1954 para a Igreja Matriz Senhor Bom Jesus da Cana Verde foram tombadas pelo Processo nº 22056/82, de acordo com a Resolução “Ex-Officio” em 12 de maio de 1982 e registrada no Livro do Tombo das Artes, sob inscrição nº 132, na página 13, datada de 27 de março de 1982.
Desta forma, no início da década de 80, todo acervo de obras sacras do pintor Cândido Portinari estavam tombados, sendo o conjunto de sete obras (14 quadros) tombados pelo IPHAN e o conjunto da Via Sacra (14 quadros) tombados pelo CONDEPHAAT. Ainda na escala estadual, em 2002, um novo processo foi aberto no CONDEPHAAT (Processo 42.682/2002), que após onze anos foi anexado ao Processo 69.966/2013, referente ao estudo de tombamento da Igreja Matriz de Batatais (Paróquia do Senhor do Bom Jesus da Cana Verde), juntamente com as demais pinturas de Cândido Portinari na igreja que não estavam tombadas pelo Estado de São Paulo e a antiga residência do Monsenhor Joaquim Alves Ferreira, denominada no processo de Casa Paroquial .
De acordo com os dados do processo, com parecer favorável do conselheiro Percival Tirapeli e indicação do conselheiro Roberto Pitaguari Germanos para a possibilidade de proteção da praça defronte à igreja, o CONDEPHAAT foi favorável ao tombamento da Igreja Matriz de Batatais (Paróquia do Senhor do Bom Jesus da Cana Verde), localizada à Praça Cônego Joaquim Alves, 42, incluindo o acervo (06) de pinturas de Cândido Portinari, a saber: A fuga para o Egito; A transfiguração; O batismo de Jesus; São Sebastião; Nossa Senhora da Conceição Aparecida, A sagrada família; e o painel do altar mor: Cristo entre os Apóstolos e; Palacete Monsenhor Joaquim Alves Ferreira (antiga Casa Paroquial) localizado à Praça Cônego Joaquim Alves, 202, município de Batatais. Deliberou ainda, aprovar a respectiva minuta de resolução, com as seguintes adequações: i) inclusão da Praça Cônego Joaquim Alves e telas ao Artigo 1º; ii) destaque às indicação de cada tela no Artigo 2º. (CONDEPHAAT, 2017, s.p.)
No âmbito da proteção municipal, a cidade só criou o seu Conselho do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (COMPHAC) em 06 de setembro de 1990, pela Lei nº1816, iniciando um levantamento de mais de 30 imóveis de valor histórico e arquitetônico que não chegaram a ser encaminhados para o tombamento. O COMPHAC de Batatais foi composto por representantes de grande influência cultural e política na cidade e teve como presidente a pesquisadora paulistana Maria Stella Teixeira Fernandes Dutra, que em 1993 defendeu sua dissertação de mestrado em história sobre a “Arquitetura de Batatais: 1880 a 1930”, pela Universidade Estadual de Campinas e orientação do professor doutor Jorge Coli.
De acordo com dados disponibilizados na “Plataforma Verri”, Maria Stella chegou a morar por um tempo em Batatais para realizar sua pesquisa e foi uma das fundadoras do COMPHAC, causando grande agitação na cidade.
Um fato digno de nota. Na noite em que a diretoria desse órgão tomava posse – dia 13 de março de 1991, iniciaram a demolição do histórico “Palacete do Cel. Martinho Ferreira Rosa”, que fora desapropriado por Washington Luís para ser o Paço Municipal. E, mais, algumas famílias tradicionais chegaram a proibir que a autora adentrasse suas residências, com receio de que fossem tombadas. De qualquer forma, com muito esforço e competência, foi feito um esplêndido levantamento técnico arquitetônico de prédios públicos, particulares e religiosos, edificados nos períodos áureos de 1880 a 1900 e, depois, de 1911 a 1930. (VERRI FILHO, s.d., s.p.)
Em comentário postado na página do Acervo Digital de Batatais no facebook, Maria Stella complementa:
Este edifício foi construído para residência do Cel. Martinho Ferreira da Rosa, fazendeiro e importante chefe político local. A cartela de sua fachada ostentava a data de 1892, ano de sua conclusão. Em 1898, o então Intendente Washington Luís Pereira de Sousa procurava um local digno de abrigar as repartições municipais e encontrou neste edifício as condições ideais. Neste mesmo ano é aí instalado o Paço Municipal que permaneceu ali até 1926. Infelizmente, o prédio foi demolido em 1991, na noite da solenidade de posse do recém constituído órgão de defesa do patrimônio cultural de Batatais, o COMPHAC.(DUTRA, 2013)
Após a criação do COMPHAC e desenvolvimento das primeiras pesquisas e levantamentos até princípios de 1993, o Conselho ficou sem representantes por mais de 15 anos, sendo novamente empossados conselheiros em 2009, mediante obrigatoriedade de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre a Prefeitura e a Promotoria do Ministério Público. Todavia, a participação da população na gestão de seu patrimônio cultural não estava definida na lei municipal, sendo previsto apenas a responsabilidade do Conselho em conscientizar a população sobre a importância da preservação e mantê-la informada sobre os bens materiais e imateriais do município.
Muitos outros fatos interessantes marcam a trajetória do patrimônio em Batatais. Em breve pretendemos continuar este tema sempre marcado por avanços e retrocessos não só em Batatais, mas como em todo o país.