Gostaríamos de dedicar esta edição de nossa coluna para destacar o trabalho que vem sendo realizado no Centro de Documentação da II Guerra Mundial Cap. Enf. Ref. da FEB Altamira Pereira Valadares (CDAPV), que funciona anexo ao Tiro de Guerra 02-047, em Batatais.
Apesar de estar fechado para o atendimento ao público, devido às medidas de prevenção à COVID-19, o Centro de
Documentação havia planejado o ano de 2020 a divulgação e publicação dos diários de guerra escritos por sua patrona, a enfermeira batataense Altamira Valadares.
Ao todo são três diários, sendo dois manuscritos e um datilografado. Os manuscritos originais do autointitulado “Diário de Guerra” – nome que a própria autora deu aos seus escritos de si, são dois volumes de encadernação simples. O primeiro volume compreende o período de 28/08/1944 (com excertos desde o dia 04/08/1944) até o dia 28/04/1945 e o segundo volume, de 29/04/1945 a 22/08/1945. Já sobre o diário datilografado por Altamira no pós guerra, a própria autora chamou de livro com a sugestão do título “Febianas”, numa releitura pessoal de seus diários entre os anos de 1961 a 1970. Foi nesse diário datilografado que a autora inseriu fotos, cartas, desenhos etc, já com desejo de publicação de seus relatos.
Entre os diários manuscritos e o datilografado há supressão ou acréscimo de impressões e relatos, o que acabou por gerar a necessidade de considerar os três por completo para contar a história de Altamira durante seu serviço na Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Este projeto foi iniciado ainda em 2018, quando a sobrinha e sucessora de Altamira, Ivete Lavagnoli de Montanha (batataense de nascimento e atualmente residente em São Paulo), entregou ao Centro de Documentação o primeiro diário manuscrito de Altamira que estava sob sua guarda, pois até então o único acervo que o espaço possuía era o diário datilografado onde havia a indicação do diário original.
Quando parti, levei comigo um espesso caderno, para meu DIÁRIO DE GUERRA, e após muitas peripécias, voltei com meu manuscrito completo. Procurei a “Editora José Olympio”, por ser de Família Batataense, conterrânea, para publicá-lo, mas nada consegui, devido ao acúmulo de obras atrasadas pela guerra. Foi um MAL, porque, se tivesse me desabafado, por certo ter-me-ia curado. E, foi um BEM, porque, com o passar dos tempos, fui perdoando tudo, me elevando mais, deixando o EGO-ISMO. (VALADARES, A. P, diário datilografado, 1970 – disponível em http://centrodocumentacaoaltamira.blogspot.com/2020/07/)
Em seguida, foi feita a parceria com o Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica (CEDAPH) da UNESP de Franca para a digitalização deste primeiro diário, além do convite a pesquisadores e professores da cidade e região, para desenvolverem textos a partir da leitura inédita do diário, antes de sua publicação.
Ordem nº 3
QUARTEL GENERAL
Forças do Exército dos Estados Unidos no Atlântico Sul
Recife, Pernambuco, BRASIL
31 de Julho de 1944
Assunto: Pedidos de viagens por convite
Para: LUCIA Osório – Enfermeira do Exército Brasileiro
OLGA Mendes- Enfermeira do exército Brasileiro
SILVIA, de Sousa Barros – Enfermeira do Exército Brasileiro
1-Você está autorizado e convidado a prosseguir em ou cerca de 6 de agosto de 1944 do Rio de Janeiro, Brasil, para os locais indicados abaixo pelas primeiras aeronaves militares e / ou navais disponíveis:
NÁPOLES, ITÁLIA
2-Franquia máxima de bagagem de sessenta e cinco (65) libras autorizada para viagens aéreas. Quando tais viagens são realizadas por aeronaves, as viagens aéreas são direcionadas. Para tais viagens aéreas, o número de prioridade APR A3 é autorizado.
Por comando do Major General WOOTEN:
Jhon E. Strong
Comissão Militar Conjunta
dos Estados Unidos do Brasil
(Modelo da autorização de viagem encaminhada ás enfermeiras brasileiras para servirem em hospitais na Itália. Acervo do CDAPV. )
Altamira inicia a escrita de seu diário em 28 de agosto de 1944, transcrevendo as anotações que fez a partir do dia 04 do mesmo mês, quando inicia oficialmente sua viagem rumo à guerra.
Ás 4hs,30 da madrugada de 4 de agosto de 1944 levantei-me e Nenê também; fez café enquanto me preparava _ vesti o macacão _ tomei café _ coloquei o embornal a tiracólo e fomos a pé até ao aeroporto _ Nenê muito triste não chegou até lá, teve que voltar, pois era proibido.
Às 6hs,10, eu, Nair Paulo de Mello, Bertha Moraes e Maria do Carmo Corrêa e Castro e demais membros americanos, após pesagem total e censura de cartas, zarpamos do aeroporto da Panair do Rio de Janeiro, com destino oficial de serviço (secret). (VALADARES, A.P., – 28/04/1944 – V.1 – disponível em http://centrodocumentacaoaltamira.blogspot.com/2020/08/4-de-agosto-de-1944.html)
Ticket de hospedagem na Base Aérea de Parnamirim em Natal Barraca 405 – Quarto 4 – Cama 2
“Se a cama da excursão estiver ocupada por engano – não fique com a primeira cama vaga – retorne ao escritório de registro para uma nova atribuição – as partidas de avião dependem da precisão da sua localização.”
(informação contida no ticket)
Acervo do CDAPV
A leitura do primeiro diário de Altamira acabou por indicar a existência de um segundo que sua sobrinha Ivete se esforçou por procurar e encontrar, passando também ao Centro de Documentação. O acesso aos diários disponibilizado nesta segunda fase foi dado inicialmente a acadêmicos das mais diferentes áreas do conhecimento e gerou os seguintes textos que estão em fase de revisão, para publicação em revista pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais:
– Sobre o diário (Ivete Lavagnoli de Montanha),
– A visão de mundo no caminho da guerra: algumas impressões da Capitã Altamira durante a Segunda Guerra Mundial (Yasmin de Andrade Leandro),
– “Meu diário de guerra”: reflexões sobre a escrita de si de Altamira Valadares (Victor Ferreira Pinto),
– O relato da alimentação na Segunda Guerra Mundial através do diário da Capitã Altamira (Natália Aparecida Pereira Souza e Nainôra Maria Barbosa de Freitas),
– Fragmentos do passado e percursos do presente: o diário de Altamira como fonte histórica e recurso didático (Karina Elizabeth Serrazes),
– Enfermeiros e enfermarias no Brasil dos primeiros tempos (Ana Carolina de Carvalho Viotti e Janaina Salvador Cardoso),
– O dia a dia da formação de um acervo sobre a Segunda Guerra (Alessandra Baltazar e Luciana Squarizi).
Como vemos, muitos temas podem ser relacionados aos escritos de um simples diário, principalmente se este possui relatos de uma história mundial.
Mas uma das coisas mais interessantes do diário é justamente a oportunidade de compreender o cotidiano das pessoas que estavam atuando diretamente neste cenário de guerra, como por exemplo, as impressões de Altamira sobre a cidade italiana de Sorriento:
Casas velhas, italianos pelas ruas, mal vestidos e mal calçados _ Apanham os cigarros do chão. Aqui, até as creanças fumam _ andam sujas, andrajosas, cheias de feridas e de moscas _ é uma tristeza _ vôam sobre nós pedindo cigarros, comida e liras. (VALADARES, A.P., 13/08/1944, v.1).
Ou o dia em que Altamira descobriu de uma forma inusitada, como eram os banheiros do exército, quando estava de partida de Nápoles para Roma:
Perguntei a 1 italiano onde era a Privada e ele me ensinou errado _ fui parar numa repleta de homens americanos calmamente desafogando as suas necessidades. (VALADARES, A.P., 16/08/1944, v.1).
A leitura do diário também nos permite compreender o tempo das coisas e suas consequências em relação ao cansaço ou stress. No volume 1, no dia 28 de agosto de 1944, Altamira assim escreve:
(…) entrei em serviço á 1hs da noite na Ward 3 _ sinto-me indisposta, com um peso na cabeça porque me aborreci ao ponto de chorar (cousa excepcional), após o jantar ás 18hs,00, sobre o serviço nosso. Estou com urticaria nas palpebras e nos labios: Tomei 2 comprimidos de Bicarbonato Sodio, assim que recebi o serviço da Ward nº3, com 1 só doente de malaria- # Bed 43 – Pinheiro Claudino, ás 24hs,10’ Nada que fazer – deitei-me um pouco umas 2 horas e depois o sargento enfermeiro Bahia, foi descançar 1 pouco também – Eles trabalham de 7 as 7 = 12 horas
Foi também neste dia que os correspondentes de guerra (Frank Norall, Lt. Cel. Carroll E. B. Pecke, John S. Thompson e Allen Fisher), que estavam hospedados no Q.G. em Vada, apareceram no 38th Hospital onde Altamira estava trabalhando e não se foram enquanto não tiraram retratos das enfermeiras.
Além das dificuldades de comunicação, conforto, banho, comida, água, frio ou calor, perigo etc, Altamira, assim como as demais enfermeiras, passavam por situações inconvenientes de assédios, que não deixaram de ser relatados no diário:
(…) começou o combate e pela 1ª vez chove e Tenho vontade de beber agua do céo da chuva, pois penso que não tem chloro, mas passou lógo _ aborrecida porque o sargento enf. Bahia quis ter intimidade comigo (horror!).(VALADARES, A.P., 30/08/1944, v.1).
Interessante também é observar que não era porque se estava na guerra que se tinha informação sobre a mesma. Muitas das novidades eram compartilhadas apenas entre os próprios combatentes brasileiros e as enfermeiras, pela facilidade de comunicação:
Um brasileiro nos disse que algumas Cias nossas já entraram em combate: morreu 1 e captaram 60 +- alemães (sic.) _ a minha pele esta horrível – Comprei uns preparados americanos e estou fazendo uso – parece melhor_ As enfermarias americanas estão repletas de feridos: muitas fraturas e aparelhos gessados. (VALADARES, A.P., 03/09/1944, v.1).
Outras notícias eram distorcidas ou inventadas, como no caso do dia em que disseram a Altamira que a Torre de Pisa havia sido destruída:
Após o jantar fomos á fonte e enquanto esperávamos as italianas encherem suas bilhas fui apanhar uvas de vinho e chupei muito e conversei com elas – Disseram-me que aqui se chama Santa Lucia e que Pizza está a 35 kilometros daqui _ muito sacrificada e q. a Torre Pizza está partida ao meio (VALADARES, A.P., 13/09/1944, v.1).
Todas essas escritas dos diários são publicadas diariamente no Blog “Centro de Documentação da II Guerra Mundial” (http://centrodocumentacaoaltamira.blogspot.com/), com o cuidado de publicar a cada dia exatamente o que Altamira escreveu há 76 anos.
Além disso, o Centro de Documentação inaugurou uma página no Facebook para divulgação das atividades e interação com o público.
Passados dois meses do fechamento do Centro de Documentação da II Guerra Mundial Altamira Pereira Valadares (CDAPV), em março de 2020, por decorrência dos avanços da pandemia no país; a instituição pode experimentar novas formas de interação com o público por meio de algumas das mídias sociais com a criação de uma página no dia 21.05.2020, possuindo atualmente 1.095 membros.
Por não abrir aos finais de semana e ofertar horários alternativos, o Centro de Documentação têm o público escolar como alvo, recebendo poucas visitas de adultos ou de turistas, sendo justamente este público que está sendo contemplado durante a pandemia.
Passados seis meses de atividade apenas pelos meios virtuais, o Centro de Documentação realizou o seguinte balanço:
– 13 publicações em maio e recebeu 820 reações,
– 33 publicações em junho com 1.140 reações,
– 39 publicações em julho com 921 reações,
– 64 publicações em agosto obtiveram 1.092 reações e
– 96 publicações em setembro receberam 1.162 reações.
Ao todo 245 postagens de maio a setembro, geraram 5.135 reações, ou seja, uma média de 34 reações ao dia, para um espaço que, quando aberto fisicamente chegava a uma média de 600 visitantes ao ano.
Atuando em suas postagens como um museu integral, onde o imaterial e o território se fundem como objetos museais, podemos concluir que houve o fortalecimento do Centro de Documentação da II Guerra durante a pandemia.
Por fim, recomendamos a leitura do diário que se estenderá até agosto de 2021.