O Rio de Janeiro continua lindo e mal gerido. O Prefeito da Cidade Maravilhosa, Marcelo Crivella, parece não ter soluções para graves problemas como o desequilíbrio fiscal, o tráfico e as milícias. Por isto, resolveu tentar algo diferente: criar uma celeuma jurídica em torno de um gibi comercializado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
Resumo para quem esteve desligado do noticiário da última semana: o alcaide carioca determinou a apreensão da HQ Vingadores – Cruzada das Crianças, porque, numa nas 264 páginas do livro (não é na capa), dois rapazes, que na história são namorados, trocam um beijo na boca. Segundo o prefeito, a revista tinha “conteúdo sexual para menores”. A Bienal conseguiu liminar impedindo a apreensão; a Procuradoria do Rio recorreu e a liminar foi cassada pelo Presidente do TJRJ; e, finalmente, a pedido da Procuradoria-Geral da República, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, suspendeu a liminar e, portanto, autorizou a comercialização da publicação.
Um dos grandes problemas nas algumas patrulhas morais feitas por autoridades públicas (que não deveriam fazer patrulha moral) é o que subjaz aos eufemismos que usam para justificar suas intervenções e não aquilo que está expresso em suas declarações.
Como neste caso a autoridade patrulheira se fez de rogada, permito-me a dúvida: qual era o tal “conteúdo sexual para menores” que embasou a decisão do Prefeito Crivella? Seria o beijo? Ou seria o beijo entre dois rapazes?
Ah, o beijo! Esta deliciosa carícia. Adélia Prado o compara ao combustível que movimenta a engrenagem da vida; Olavo Bilac o chama “perpétua saudade de um minuto” ao lembrar do único beijo recebido da amada que morreu; para Drummond “O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.” O beijo não é o problema do mundo. É sinal de carinho, intimidade e, também, de desejo.
Não há registro do primeiro beijo na boca. Os hindus já o praticavam a 1.200 a.C., segundo consta nos vedas. Em Roma, havia do osculum (beijo da amizade); o basium (beijo entre homem e mulher) e o savium (beijo de língua). Os soldados de Alexandre da Macedônia, conheceram o beijo na boca na Índia e difundiram sua prática. O Papa Inocêncio III, no Século XII proibiu o beijo na boca (parece que a lei não “pegou”). Até Darwin tratou do assunto no livro a Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, considerando-o como que inato à espécie humana (extraí as referências históricas da matéria a História do Beijo na Boca, da Revista Superinteressante, nov-2002, disponível na internet).
Dirão meus detratores: mas é ato libidinoso e inapropriado para crianças.
Este nunca foi o problema. O príncipe quebrou o feitiço da Branca de Neve com um beijo; Shrek e Fiona se beijaram no desenho mundialmente famoso. E, por conta do Crivella, recordamos um beijasso do Pernalonga no Hortelino. Aliás, o Pernalonga também dá um beijasso no Michael Jordan, no filme Space Jam.
O que quero dizer é que o beijo na boca também é conhecido das crianças e nem por isso elas saem distribuindo beijocas para todo mundo. Crianças já viram os pais se beijarem; já viram isto em novela, filme, desenho animado, na internet. Em suma: faz parte do processo de amadurecimento.
E é aqui o ponto da conversa: o beijo nunca foi importante na tentativa de censura do Prefeito Crivella. A preocupação era o beijo entre dois rapazes, entre dois seres humanos do mesmo sexo biológico. Arrisco dizer, com boa dose de certeza: fossem um rapaz e uma moça se beijando, nada teria acontecido.
É fato: ver pessoas do mesmo sexo se beijando causa estranheza em muitas pessoas e em tantas outras a estranheza se converte em ódio. Aos que estranham e odeiam: cuidado! Freud explica que isso pode ser um desejo reprimido.
Aqui poderíamos escrever páginas e páginas sobre homofobia, ou a novel LGBTfobia, ou mesmo sobre transexualidade e homossexualidade.
Nada disso é necessário: o melhor caminho é o desinteresse. A escolha das pessoas quanto ao exercício de sua sexualidade, interessa apenas a elas próprias e, portanto, desinteressa ao resto do mundo. Sigamos esta regras básica e o preconceito por motivação sexual desaparece. Se uma revista mostra dois rapazes, duas moças ou um rapaz e uma moça se beijando, isso não deve ter a mínima importância é apenas parte de uma história.
E, para terminar, o chavão: a educação. Se as crianças sabem que seres humanos se beijam, não importa se são do mesmo sexo ou de sexos diferentes, o caminho não é esconder (até porque é impossível esconder), o único caminho é educar. E educar se faz orientando, mostrando, não escondendo. A ocultação só serve para formar ignorantes e preconceituosos.
Enfim, parece que o Prefeito Crivella adicionou o “problema” dos beijos gays às questões que não vai conseguir resolver no Rio de Janeiro. Pelo menos esta é uma coisa boa.
Sobre a revista: o estoque se esgotou rapidamente (parece que o público está interessado no tal beijo).