A troca de presentes entre chefes de governo de países que mantém relação diplomática existe desde que se tem notícia do mundo civilizado. Ao passar dos séculos, essa prática foi ganhando algumas regras e protocolos, exatamente para evitar dores de cabeça como a que a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro ganhou nessas últimas duas semanas.
Essa dor de cabeça tem forma de um jogo de colar, par de brincos, anel, e relógio, confeccionados em diamantes, avaliado em R$ 16,5 milhões de reais, presente do governo da Arábia Saudita para a ex-primeira dama. Receber o presente não configuraria nenhuma irregularidade, se não tivesse sido ignorada todas as regras de ingresso em território nacional do caríssimo regalo, levantando suspeitas do cometimento de vários crimes, como descaminho, peculato, lavagem de dinheiro, apropriação de bem público, entre outros possíveis. Ante às suspeitas, o Ministro da Justiça Flávio Dino, imediatamente determinou que a Polícia Federal abra investigação, e muita gente vai ter que explicar não somente a entrada ilegal do tal presente, mas porque foram feitas várias tentativas de liberação posterior, sempre por intermédio de “carteiradas” de representantes do governo do ex-presidente Bolsonaro.
Primeiramente, o porque da resistência do então governo em declarar como bem público as joias avaliadas em R$ 16,5 milhões, contrariando frontalmente entendimento fixado pelo Tribunal de Contas da União desde 2016, que na ocasião concluiu julgamento (acórdão TCU 2255/2016) que fixou as regras que definiram como seriam feitos os registros e guarda de presentes recebidos pelas autoridades públicas, e se o material iria para acervo público ou privado da Presidência, com base, entre outros, no princípio constitucional da moralidade (artigo 37).
Outro pronto que demonstra a total ilegalidade na entrada das jóias no Aeroporto de Guarulhos, está na forma em que a comitiva brasileira que foi à Arábia Saudita tentou entrar com elas no Brasil. O Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/2009) e instruções normativas da Receita Federal não permitem o que o militar Marcos André dos Santos Soeiro, bem como qualquer outro cidadão, tentou fazer no dia 26 de outubro de 2021.
O assessor do então ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia) chegou ao país com as joias dentro de sua bagagem pessoal, sem declaração à alfândega, optando por passar pela “fila verde” (de nada à declarar). Acabou parado pelos fiscais da Receita, e o valioso material foi apreendido para regularização. Foi quando o assessor e o próprio ministro afirmaram aos fiscais de que o par de brincos, anel, colar e o relógio confeccionados com diamantes seriam, na realidade, um presente de estado dado pelos sauditas à então primeira-dama Michelle Bolsonaro, o que acabou complicando a situação, ao revelar outras ilegalidades. Vejamos.
Conforme a legislação, os representantes do governo deveriam ter procurado a alfândega, provado a doação feita pelas autoridades árabes e formulado uma declaração de importação do material para o acervo da União, que autorizaria a entrada dos objetos no país, e não resultaria em cobrança de tributação. Porém, isso nunca foi feito, de acordo com os documentos registrados pela Receita e integrantes do Fisco. E mais, na hipótese de agente público deixar de declarar o bem como pertencente ao Estado Brasileiro, é possível a posterior regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública e normalização da situação aduaneira. Isso também não aconteceu no caso, mesmo após orientações e esclarecimentos prestados pela Receita Federal a órgãos do governo (existem ofícios que comprovam isso).
Mas o governo federal não providenciou regularização de nada, ao contrário, só piorou a situação, levantando mais dúvidas, quando então efetuou várias tentativas de desembaraço das joias por meio de “carteiradas”, de acordo com o jornal “O Estado de S. Paulo”, que revelou o caso. A mais escandalosa tentativa ocorreu através do envio a Guarulhos, a três dias do fim do mandato de Jair Bolsonaro, em 29 de dezembro, do militar Jairo Moreira da Silva em um avião da Força Aérea Brasileira (passagem, estadia e alimentação custeados pelo Estado) para “atender demandas do senhor presidente da República naquela cidade”, em específico a retirada das jóias dos cofres da Receita Federal para serem levadas à Brasília, sem nenhuma justificativa mais consistente, conforme ofício apresentado à Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos. Logicamente, não colou.
Michelle Bolsonaro se manifestou através das redes sociais, ironizando o valor milionário do presente, dizendo não ter conhecimento do presente e criticou duramente a imprensa. Dos Estados Unidos onde reside desde o final de 2022, o ex-presidente Bolsonaro também negou que tenha conhecimento sobre as joias, diz não saber do que se trata e que nada recebeu, mesmo com as tentativas de reaver as jóias feitas pelo chefe da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes, e pelo tenente-coronal do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens e “faz-tudo” do ex-presidente.
É por essa e por outras que Bolsonaro não tem pressa pra voltar dos EUA. À conferir.