Como já dissemos em outra edição, em 2019 estamos comemorando os 25 anos do Centro de Documentação da II Guerra Mundial “Cap. Enf. da FEB Altamira Pereira Valadares”, sendo uma de nossas metas, o estudo e publicação do diário de Altamira.
Recentemente, um fato que nos chamou a atenção e que agora compartilhamos com os leitores, foi a possibilidade de entrecruzar histórias narradas em diários ou livros de guerra, sendo possível ampliar nossa percepção sobre a realidade vivida pela FEB (Força Expedicionária Brasileira) em solo italiano.
Assim, apresentamos um pequeno panorama da II Guerra através do entrecruzamento do Diário de Altamira Valadares (manuscrito entre 28/08/1944 a 28/04/1945) e dos livros: Crônicas de Guerra (escrito na guerra e publicado em 1964, por Rubem Braga, correspondente de guerra do jornal Diário Carioca); Cruzes Brancas – Diário de um Pracinha (livro publicado em 1945 e escrito pelo jovem estudante de direito Joaquim Xavier da Silveira, que aos 20 anos de idade foi convocado para guerra, sendo classificado no Regimento Sampaio); Hospital 32 – Memórias de um Médico Expedicionário (escrito pelo médico Dr. Edgardo Moutinho dos Reis, principalmente sobre o Serviço de Saúde dentro da Divisão Brasileira no qual Altamira trabalhou) e Um Médico Brasileiro no Front (escrito por Massaki Udihara, primeiro filho de imigrantes japoneses a se formar em medicina na USP, 1º tenente do 6º Regimento de Infantaria da FEB, livro publicado a partir do diário encontrado após seu falecimento).
Todos os livros e o diário da Cap. Altamira fazem parte do acervo do Centro de Documentação da II Guerra em Batatais.
O primeiro desses autores a deixar o Brasil foi Massaki, no 1º Escalão que partiu do Rio de Janeiro no dia 02 de julho de 1944, a bordo do navio americano General Mann. Altamira segue para a Itália em escalas de voo da FAB, no dia 31 de julho. Já o médico Dr. Edgardo Reis, o soldado Joaquim Silveira e o correspondente de guerra Rubem Braga, partiram todos nos 2º e 3º Escalões, no dia 22 de setembro do mesmo ano.
No mês de novembro de 1944, todos os citados estavam em missão na Itália, nas proximidades dos montes Apeninos. De acordo com Joaquim Silveira, escalado para ser motorista de jipe na guerra, “O dia 7 de novembro ficará marcado na nossa memória para sempre. Tombaram dois companheiros e alguns ficaram feridos. O cabo Ladeira e o Orlando não estava, conosco. Eram do pelotão de reconhecimento, saíram para exercício e entraram num campo minado. Os dois morreram.” (SILVEIRA, 1945, p.32).
Também a 7 de novembro, Massaki relata que o dia amanhecera encoberto e desde cedo ele se preparava para deslocamento. A manhã estava fria e como já era de costume, os meios fornecidos para a locomoção eram insuficientes e estavam sempre atrasados.
“Trajeto longo, Lucca – Pistóia e daí Rota 64 montanha acima. É a estrada que corta os Apeninos e corresponde ao Passo de Futa. Sobe-se e do alto vai-se descortinando um belo panorama, que seria melhor se não fosse o dia. Depois se começa a entrar na vertente do Pó. O frio aumentou. Vale estreito e gélido. Paisagem bonita. A encosta de cor variável, do verde ao amarelo, indo à cor de fogo. Num certo trecho uma represa de águas de cor verde. Bonita. Em outra circunstância seria interessante essa viagem.”(UDIHARA, 2002, p.158)
Passadas duas semanas, no dia 20 de novembro, eis que Joaquim também cruzaria a Rota 64 para tomar posição no front pela primeira vez, desde sua chegada a Itália.
“Foi com certa emoção que fechei a boca do meu saco, arrumei a mochila e pela primeira vez carregamos as cartucheiras com a munição que nos tinham dado na véspera. Ao segurar o metal frio das balas pensei: É a guerra que começa para nós, desta vez não temos escolta para brigar, somos nós mesmos que teremos que fazê-lo.(…) Com esses pensamentos coloquei meu jeep no seu lugar no comboio e fiquei fazendo o que mais se faz no Exército: aguardar ordens.” (SILVEIRA, 1945, p.34)
Sobre a Rota 64, Joaquim escreve que “É uma maravilha da engenharia italiana aquela rodovia, mas a par disso, mais podíamos apreciar a fantástica improvisação da engenharia americana que construíra as pontes e remendara a estrada nos lugares atingidos”. (SILVEIRA, 1945, p. 35)
Dois dias após, em 22 de novembro, Altamira, Dr. Edgardo e demais membros do Serviço de Saúde foram escalados para compor o Hospital de Campo 32 (Field Hospital) no meio dos Apeninos, sendo uma unidade hospitalar instalada o mais próximo possível da linha de frente (aproximada-mente 9 quilômetros), com a finalidade exclusiva de atender apenas aos feridos intransportáveis cujo estado de saúde impunha socorro de máxima urgência.
Desta forma, o pequeno comboio formado por um carro oficial, um caminhão e um jipe, seguiu a Rota 64.
“Decorridos uns três quilômetros, começamos a galgar os montes Apeninos pela estrada 64, via perigosa, cheia de precipícios e curvas muito fechadas. À medida que subíamos os famosos montes italianos, testemunhas imorredouras da História agitada da Itália, víamos lá em baixo, a cidade de Pistóia, várias estradas enriquecendo o panorama, num verdadeiro mosaico (…)”. (REIS, 1947, p.60).
Altamira, acomodada em caminhão juntamente com as bagagens e outras enfermeiras, também se maravilha com a paisagem.
“a viagem linda, agradável – subida Colina. Muita destruição como sempre – estrada e vista semelhante a Petrópolis e Teresópolis, só cada vez mais frio – contornos de montanhas e em certos picos já encobertos de neve – chegamos ao Field Hospital mais ou menos às 16:30 hs – muita lama – frio – corre perto movimentado rio.” (VALADARES, 22 de novembro de 1944).
No dia 26 de novembro, Altamira escreve em seu diário que aproximadamente às 15:00 horas chegaram para uma visita ao Hospital 32 os correspondentes de guerra Frank Norall de Washington e Rubem Braga do Diário Carioca.
“Dei todos os informes e mandei notícias para Nenê, estou contente.” (VALADARES, 22/11/1944).
Sobre os informes de Altamira, Rubem Braga escreve que: “Ontem passei por um hospital de campo instalado em um sobrado à beira da estrada que vai para a frente. Ali só ficam os feridos que tem necessidade urgente de ser operados e não podem suportar viagem mais longa. No momento só havia cinco homens, todos já operados: três brasileiros, um americano e um alemão. (…) a enfermeira Altamira Valadares me diz que, está muito satisfeita com aquele novo hospital. __Estava cansada de dormir em barracas. Aqui temos nossa casa. A gente passa melhor e os doentes também. Arranjamos uma cozinheira italiana muito boa”. (BRAGA, 1964, p.127).
E entrecruzando essas histórias, conseguimos perceber melhor as dificuldades que nossos soldados, médicos e enfermeiras passaram durante a II Guerra, em relação ao frio, equipamentos de trabalho, alimentação, comunicação e saudades de casa.
Caso os leitores tenham interesse em conhecer mais sobre essa e outras histórias, informamos que em breve lançaremos uma coleção de artigos realizados por pesquisadores de diversas áreas de atuação, sobre o Diário de Altamira.