Em 10 de outubro de 2018, uma quarta feira, lá estava eu no Allianz Parque para assistir um show certamente memorável: Roger Waters, baixista, vocalista e compositor de uma das minhas bandas preferidas, os ingleses do Pink Floyd. Sempre tive conhecimento do engajamento político do músico inglês, que em seus shows faz questão de lembrar através de suas músicas a trajetória de seu pai, Eric Fletcher Waters, oficial britânico dos Fuzileiros Reais, morto durante a Segunda Guerra Mundial. Nos shows, seus posicionamentos contrários a governos autoritários e/ou de direita sempre são bem incisivos.
Naquela ocasião, estávamos às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial aqui no Brasil, e com Bolsonaro à frente de todas as pesquisas, Roger Waters não perdeu a oportunidade de mostrar um “ELE NÃO” gigante no telão do seu palco. Não deu outra, tomou uma sonora e demorada vaia!
Achei desnecessária a manifestação do artista, (afinal de contas, o que eu havia pagado – e caro! – para assistir era um show de rock, não um comício político) mas respeitei a liberdade dele de se manifestar, pois vivemos numa democracia, e qualquer cidadão, mesmo um estrangeiro, pode expor suas preferências livremente. No caso dele, ele assumiu as consequências de seu posicionamento naquela ocasião, e levou uma vaia consistente. Mas o importante é que em nenhum momento cogitou-se em censurar a fala do artista em suas próximas apresentações, tampouco a vaia da plateia, que naquela oportunidade, em sua maioria gritava em coro: “MITO, MITO…”.
Fiz essa introdução para viajarmos de outubro de 2018 para o atual mês de março de 2022, e desembarcarmos no festival Lollapalooza, que no último dia 26 protagonizou um imperdoável e vergonhoso episódio de censura prévia, bem aos moldes daqueles que corriqueiramente ocorriam por aqui durante o período de ditadura militar. Numa canetada, o ministro Raul Araújo do TSE proibiu futuras manifestações políticas dos artistas do festival, e poderia ter aberto um precedente perigoso, uma vez que criaria brechas para punir outras manifestações legítimas no futuro.
Esta proibição de “manifestação política” no festival, causou indignação e repulsa da grande maioria dos juristas, da quase totalidade da classe artística, e a repercussão somente fez o fato tomar um alcance muito maior, ao ponto de ter se tornado um assunto tão comentado quanto a morte do baterista do Foo Fighters, que se apresentaria no Festival na noite de domingo.
Alertado por assessores do tiro no pé, na segunda feira, o próprio presidente Bolsonaro telefonou para o presidente do seu partido (PL), Valdemar Costa Netto, autor do pedido de censura no TSE, para que desistisse da ação, preocupado com a repercussão negativa do caso. Ficou o dito pelo não dito, mas o estrago já estava feito. Reforçou a pecha de autoritário, ao menos perante o eleitor mais jovem e engajado às causas culturais.
Mas o episódio foi útil ao menos para esclarecer o limite entre livre expressão de opinião e propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea. No caso do Lolla, fica claro tratar-se de ato de manifestação espontânea e gratuita de ideias, essencial para assegurar a continuidade democrática e fomentar o debate público sobre eleições, garantindo o exercício do constitucional direito à liberdade de expressão.
Essa garantia é ampla, sem benefício a preferências ideológicas, religiosas, comportamentais, étnicas, etc…, e deve ser garantida a todo cidadão, que por sua vez, assume a responsabilidade de responder por eventuais exageros ou ilegalidades que venha a cometer. A lei deve estar pronta para ser usada quando transgredida, e apenas com a efetividade da aplicação das sansões cabíveis é que o cidadão terá a exata noção dos seus limites legais.
Teremos um ano eleitoral com muitas emoções à flor da pele, e uma polarização que causará muitos episódios iguais a este do Lollapalooza, com manifestações acaloradas de ambos os lados, cabendo a nossa Justiça ter a ponderação e firmeza redobradas para evitar que se fomentem mais confrontos. Finalizando: censura prévia reside ao lado do autoritarismo, e cala-boca já morreu, quem manda na minha boca (e responde por ela) sou eu!