No último dia 28 de junho comemorou-se o Dia Internacional do Orgulho Gay, uma data criada com objetivo de conscientizar a população sobre a importância do combate à homofobia para a construção de uma sociedade livre de preconceitos e igualitária, independente do gênero sexual. Não importa se uma pessoa é heterossexual, homossexual, bissexual, transgênero, travesti ou intersexo, o importante é ser respeitada como um ser humano e ter todos os seus direitos garantidos.
Na nossa entrevista especial dessa semana, falamos com Anabella Pavão da Silva, assistente social de destaque na nossa cidade. Aos 33 anos, a profissional com 10 anos de experiência, é filha única de José Luís e Vilma, sendo formada pela Unaerp e Mestre e Doutora em Serviço Social pela UNESP/Franca. Deixando o nome da certidão de nascimento de lado, apenas nas recordações, Anabella afirma que desde criança se via diferente, sendo atraída por tudo aquilo que era voltado ao feminino. Porém, naquela época, não tinha as condições para questionar a diferença como hoje em dia já é possível. Daí se manteve até aos 18 anos em relação às suas atrações afetivas e até aos 30 anos sobre a identidade de gênero.
INFÂNCIA: “Pensando de forma bem geral, a minha infância foi feliz, Sempre tive o amor e carinho dos meus pais e das minhas avós. Infelizmente as minhas avós já não estão mais neste plano, mas fui muito amada por elas, mesmo sem elas saberem de fato quem eu desejava ser. A minha avó materna, Lourdes, era aquela que já desconfiava de algo ou, no coração, já tinha certeza. Por não ter irmãos ou irmãs, cresci rodeada de tios, tias, primos e primas. Era o meu vínculo de parentesco mais próximo que me fazia muito feliz. Sobre as minhas relações sociais, era bastante difícil, pois o bullying tomava conta do meu dia-a-dia na escola. Infelizmente não educamos as crianças no sentido de respeitarem as diferenças, mas sim as incentivamos à chacota, ao preconceito e à violência. A Escola, despreparada, não por negligência, mas pelo tempo histórico em que a sexualidade e gênero era um tabu muito maior do que é hoje, não conseguia me proteger de fato. O importante é que sobrevivi”, destacou.
Questionada sobre a reação dos pais, Anabella afirmou que sua minha mãe foi a primeira a saber. “Ela ficou chocada, mas não surpresa, pois em seu coração, já havia o indicativo de eu não igual aos outros. Ela lidou bem com todo o processo. Quando me assumi transexual, ela me questionou as razões para isso, mas a conversa foi muito boa. Já o meu pai, a situação foi mais complicada. Meu pai nasceu e cresceu em uma cultura bem conservadora, católica, apresenta comportamentos machistas, enfim. Admito que ele melhorou muito. Hoje, aos 60 anos, ele tem outras posturas e segue em sua evolução. Até os meus 28 anos, a minha relação com ele sempre foi muito conturbada, não entrávamos em consenso. Sabia que ele me amava e eu também o amava, mas não externalizávamos isso de forma alguma. O preconceito dele fala mais alto e a minha impaciência para o diálogo também sobressaia. Nossa relação melhorou significativamente, quando saí de casa em 2015. Viver só e distante dele, curiosamente me aproximou de meu pai. Hoje temos uma relação pai e filha valorosa e harmoniosa. Espero que dure para sempre”.
JC – Onde, quando e de que forma você sofreu o maior preconceito?
Anabella: Hum, pensando aqui, eu não cheguei a sofrer nada que fosse grave. Reparo vários olhares de reprovação na rua, mas não me incomodo. Até chamo a atenção da pessoa quando ela olha demais. Pergunto se precisa de algo ou faço um cumprimento. Geralmente, elas ficam sem graça e seguem a sua vida. Somente uma vez, um cara entrou no meu Facebook e me mandou uma mensagem dizendo que era a vergonha dos homens. Mas acho que ele disse mais sobre do que sobre mim, pois quem é bem resolvido, não se incomoda com a vida alheia, concorda? Claro que, observando em redes sociais e em outros espaços, discursos de ódio que atacam a comunidade LGBTQI+ sempre atinge a gente, pois somos ameaçadas e ameaçados todos os dias. Pessoas como eu, morrem todos dias, vítimas da transfobia. Transfobia para quem não sabe é a violência praticada contra uma pessoa travesti ou transexuais pelo fato serem quem são. É a violência motivada pelo ódio, pelo preconceito, pela falta de humanidade de quem nos agride ou nos mata. Felizmente, diretamente a mim, até o momento, nunca sofri violência física.
JC – O que é ser trans? Qual a diferença?
Anabella: A pessoa travesti ou transexual se identifica e se expressa com as todas as características do sexo oposto. Lembrando que sexo é a nossa designação biológica. Transexualidade e travestilidade são identidades de gênero, ou seja, como nos reconhecemos e agimos no dia-a-dia. O que é muito importante é sempre se atentar à forma como a pessoa gosta de ser chamada o uso correto do gênero do nosso idioma a/o, ela/ele quando nos reportarmos a uma pessoa T. O que mais destaca na comunidade T atualmente, é a busca por tratamentos médicos e estéticos que nos permitem viver a nossa identidade com a maior dignidade e liberdade possível. É um direito nosso e o SUS garante tratamentos médicos, hormonais, psicológicos, psiquiátricos, fonoaudiológicos e a cirurgia. Temos muito a avançar, pois nem todos os equipamentos do SUS ainda possuem a estrutura adequada para a oferta do atendimento, mas estamos caminhando.
JC – Em relação a paquera, já aconteceu de você precisar falar que era trans por que a pessoa não conseguiu identificar?
Anabella: Depois que me assumi trans, eu ainda não vivi nenhum relacionamento sério. Até houve possibilidades, mas o foco na carreira, nos estudos e o medo me impedem de me envolver afetivamente com outra pessoa. As pessoas que conheci que propuseram namoro, sabiam que eu sou transexual.
JC – Acredita que por ser uma pessoa bem instruída, estudada, as condições são diferentes?
Anabella: Mais ou menos. Percebo que muitas pessoas me respeitam por saber da minha trajetória profissional como Assistente Social, do meu envolvimento no mundo acadêmico, como estudante de mestrado, doutorado, professora universitária, palestrante e conferencista em vários espaços. Entendo que este status me protege de preconceitos maiores. Todavia, entendo que um diploma não protege de fato o meu direito à vida, pois, pouco importa para o agressor a dimensão do seu currículo, o alvo dele é o fato de sermos diferentes e é ali que a violência tem o seu efeito nocivo e, muitas vezes, fatal.
JC – Qual é o pior lugar para se frequentar?
Anabella: Pode parecer agressivo de minha parte, mas penso que são as Igrejas. As lideranças do cristianismo nesta cidade prezam por valores arcaicos que marginalizam a comunidade LGBTQI, por entenderem que não somos dignas/os de uma benção ou da acolhida, amor e solidariedade que Cristo nos ensinou. Aí fica uma inquietação minha: que amor ao próximo é esse que é seletivo? Só devemos amar uns aos outros se todos forem heterossexuais e cisgêneros? Infelizmente a religião católica e protestante tem prestado um sério desserviço à sociedade, mesmo quando o Papa ou lideranças protestantes defendem a inclusão e a acolhida de todos.
JC – Preconceito existe em todas as idades, ou tem uma específica?
Anabella: Entendo que o preconceito perpassa por todas as gerações. Se uma criança se manifesta de padrões hegemônicos de comportamento ela é agredida verbal, psicológica ou fisicamente por isso. Quando se é adolescente, o preconceito age de forma severa, ainda mais que é na adolescência que estamos aprendendo a nos conhecer e a traçar os caminhos para a nossa vida, levando alguns adolescentes, inclusive, ao suicídio. Quando se é jovem e adulto, o preconceito age de forma agressiva ao nos excluir de espaços da vida social e comunitária, além das violências que nos matam todos os dias. Quando se é velho, a ideia de inutilidade, improdutividade somadas à sexualidade e gênero, marginaliza e violenta a pessoa que se percebe distante e segregada do restante da sociedade. A noção de vivências LGBTQI na velhice ainda é algo novo, pois nem todas as pessoas da comunidade a qual pertenço, vivem tanto. Para um exemplo, a expectativa de vida das pessoas transexuais e travestis é de 35 anos, segundo estatísticas oficiais governamentais e de coletivos da sociedade civil.
JC – Qual é a sua luta? Sua bandeira?
Anabella: Na verdade são várias bandeiras que levanto. Pela minha história de vida, defendo direitos de cidadania e dignidade humana para toda a população LGBTQI+ deste país, com melhores oportunidades de estudos, trabalho e crescimento. Enquanto pesquisadora, levanto a bandeira da proteção integral de crianças e adolescentes, o fim da violência contra estas gerações, melhores condições de vida para eles e suas famílias. E, na condição de Assistente Social, tenho a histórica bandeira pela valorização e aprimoramento do Sistema Único de Assistência Social, tive 12 anos de caminhada no Conselho de Assistência Social do município, ocupando a presidência por 3 mandatos, além de ser defensora do SUS – gratuito, universal, integral e de qualidade. No geral, luto por direitos, por políticas públicas, por dignidade de qualquer pessoa, sem distinções.
JC – Seu trabalho na assistência social é destacado na cidade. Isso seria um fator de orgulho para você, que diariamente precisa vencer os preconceitos?
Anabella: Eu penso que sim. O meu envolvimento na Rede de Políticas Públicas do município desde a época em que eu era estagiária até hoje, permitiu que eu construísse boas relações com trabalhadores, gestores, políticos e pessoas que acessam os serviços da Rede. E a transição de gênero não mudou estas relações, ao contrário, elas se fortaleceram. Entendo que sou respeitada por estas pessoas, pelo menos as que eu tenho maior proximidade e relações de trabalho, e isso é muito bom. Penso que Batatais é uma cidade peculiar, pois, ao mesmo tempo que observo muita gente preceituosa ao me observar com susto ou desprezo no cotidiano, vejo muitas pessoas, sejam jovens, mais maduras ou idosas agindo de forma muito acolhedora, respeitosa, me tratando de forma natural. A minha identidade trans não faz diferença para estas pessoas. Elas simplesmente me veem como um ser humano que está aqui para evoluir e para deixar uma contribuição. Sinto-me bem a cada sorriso, cumprimento ou troca de palavras que estas pessoas desenvolvem comigo nos espaços que frequento. Isso me faz ter mais força para encarar os preconceituosos e moralistas desta cidade.
JC – Por fim, vivemos um ano de eleições. Você tem interesse em se ingressar na política?
Anabella: No momento não! Estou filiada ao PSOL de Batatais. Recebi dois convites para me candidatar à vereadora nas próximas eleições municipais que ocorrerão em breve, mas não me vejo partícipe direta no Poder Legislativo. Tenho uma análise muito fatalista sobre a política partidária brasileira, o que me desanima de inserir nestes espaços para prosseguir as minhas lutas.